Eu não votei em Dilma Rousseff e perdi. Perdi junto com os milhões que votaram em Aécio Neves, mas perdi. Perdi para os 54,5 outros milhões de cidadãos brasileiros que a elegeram. No resumo daquele dia, eu inapelavelmente perdi. Não estava feliz, fazer o quê? Mais quatro anos até a próxima eu deveria esperar. Não votei em Dilma Rousseff e assim perdi.
A democracia funciona desta forma, contada em modo simplório: fazemos projetos, avaliamos candidatos em suas bandeiras, discursos e ideologias. Cumprimos então finalmente o sagrado do rito esperado: votamos. Trata-se de um jogo com suas regras bem claras. Neste jogo, fatalmente alguns perderão. Naquele dia, eu fui um destes. Perdi. Eu não votei em Dilma Rousseff. Perdi.
No entanto, olhando aqui com os meus botões, penso que Dilma tenha me feito ganhar algo que provavelmente havia perdido há um bom tempo atrás: a capacidade de me mobilizar por um bom combate na política. Lá pelos primórdios de 2015, complacente, assisti a toda uma movimentação pelo ódio, pela coisificação das pessoas, pelo desprezo ao pensamento contrário e pela histeria rouca a gritar sem o uso do verbo argumentar. Assisti de braços cruzados às movimentações espúrias no congresso nacional, patrocinadas por um gangster psicopata e ao retorno do neofascismo nas ruas a clamar pela volta da ditadura. "Caricatos", pensava. Figuras grotescas que iam surgindo de antigos baús enferrujados. Eram engraçados e intrigantes. "Momento novo este em que estas figuras passavam novamente a ter a coragem de aparecer na rua". Plínio Salgado saltitando em seu túmulo. Os gritos de "bolsomito" apareciam para lá e para cá como que em uma festa estranha. Um universo surreal abrindo suas cortinas de teatro decadente.
Importante, devo ressaltar que a experiência democrática nos traz uma certa letargia com o passar dos anos. Acreditamos que ela se moverá sozinha, independente de nós, independente de cada uma de nossas ações individuais. Tomamos carona em seus vagões e apenas aguardamos pela próxima estação eletiva. Ledo engano imaginar isso.
A democracia é um bem precioso a ser defendido a todo custo, é uma joia muito cara a qual não podemos vacilar em sua vigilância. É um bem que deve estar muito bem guardado em nossa alma de tal forma a sermos como guardiões bem atentos aos movimentos do bandido que nos espreita.
E foi assim, nesta letargia democrática, que fui tocando a minha vida pessoal, o meu barco, os meus negócios particulares. As coisas estavam acontecendo e eu nada fiz. Sentia, claro, um certo "perigo no ar", um certo "assobiar de pássaros" que me contavam que os batimentos democráticos estavam irregulares, pulsando em ritmo diferente. Mas aquilo "não era problema meu", não votara naquele governo, estava de fora daqueles embates. Dia após dia, a presidente do país era transformada em coisa, era chamada de meretriz, era achincalhada em estádio, era tratada como débil mental, aloprada e outras coisas das mais infelizes. Panelaços de insultos, ódios regurgitados nas casas de boas famílias leitoras da Veja. Fizeram bonecos com roupas de presidiários para indivíduos que nem sequer eran réus em processo criminal. A festa era linda para os celebrantes. Dardos flamejantes eram jogados aos céus a partir da FIESP. Mas ora, pensava: "deixe os caras lá fazendo o seu protesto. Que mal há?" Nenhum, pensava. Estavam exercendo os seus plenos direitos de manifestação democrática. Assim era e assim é.
Mas algo de muito terrível lá se formava, a coisificação do ódio. A transformação de pessoas em objetos do desprezo. Como professor de história econômica, eu sabia muito bem de todas as experiências cíclicas pelas quais a trajetória deste país passara. Conhecia razoavelmente bem os golpes parlamentares e militares anteriores. Mas a letargia tende a nos fazer esquecer do passado. De certa forma, ficamos prepotentes com a história. Nos iludimos com retas imaginárias, sereias melodiosas a dizer "as curvas não mais existem - entramos agora na infinita highway".
Não entrarei aqui nos detalhes e no mérito daquilo que eu sem dúvida alguma considero como o mais pérfido golpe político já perpetrado neste país. Só a lista da Odebrecht já seria um bom indicativo sobre o papel dos envolvidos. Mas vai muito mais além. É um descompromisso completo com a razão, com a moral e com a isenção em toda esta escalada da insensatez. Mais do que isso, é um descompromisso com algo sagrado na democracia: "a derrota". A recusa renitente em não aceitar o "perder" por parte dos atores participantes. O Brasil se encontra institucionalmente doente. As regras foram violadas nos seus procedimentos mais essenciais. O golpe que se quer consumar hoje não é um atentado às formas procedimentais, mas um bombardear vil sobre a essência que se faz substância na democracia: derrotados perdem e esperam pelo próximo jogo.
Os ataques virulentos à figura da presidente, objetificada como a grande meretriz só mostram o quão doente está uma sociedade que não respeita os mínimos valores da cordialidade, da civilidade e da valoração aos iguais, do respeito às pessoas tais como elas são: gente de carne e osso. O "objetificar" mental é produto bem acabado da arte da manipulação. Teria sido a Globo? Teria sido a Veja, teria sido o Estadão? Por certo há culpa ali no cartório, mas não existiria tamanha semeadura sem um campo propenso a florescer.
O resultado é a falta completa de noção de que existem pessoas do outro lado. Que estas pessoas pensam, que elas comem, que elas acordam, tomam café e vão ao trabalho. Dilma pode ter tido seus bons erros e não foi à toa que eu não votei nela. Mas pessoa alguma merece o que se tem feito a ela neste país. Pessoalmente me sinto envergonhado por tudo isso. É um dia lamentável este 11 de maio de 2016. O dia em que os derrotados sequestrarão a jovem senhora que uma vez maltrapilha ousou ser bela neste país: a jovem chamada democracia.
A presidente Dilma, pela qual nunca tive grande apreço, sai vencedora deste aborto democrático que lhe foi imposto. Lutou o bom combate. Eu, por mim, só tenho a agradecê-la - me reaprendi como um vigilante diário a vigiar pelas coisas boas da política que imaginara estarem no "ar como dadas". E como guardião, só posso terminar dizendo algo bem direto aos que sequestraram nesta noite: "Vai ter luta!"
A democracia funciona desta forma, contada em modo simplório: fazemos projetos, avaliamos candidatos em suas bandeiras, discursos e ideologias. Cumprimos então finalmente o sagrado do rito esperado: votamos. Trata-se de um jogo com suas regras bem claras. Neste jogo, fatalmente alguns perderão. Naquele dia, eu fui um destes. Perdi. Eu não votei em Dilma Rousseff. Perdi.
No entanto, olhando aqui com os meus botões, penso que Dilma tenha me feito ganhar algo que provavelmente havia perdido há um bom tempo atrás: a capacidade de me mobilizar por um bom combate na política. Lá pelos primórdios de 2015, complacente, assisti a toda uma movimentação pelo ódio, pela coisificação das pessoas, pelo desprezo ao pensamento contrário e pela histeria rouca a gritar sem o uso do verbo argumentar. Assisti de braços cruzados às movimentações espúrias no congresso nacional, patrocinadas por um gangster psicopata e ao retorno do neofascismo nas ruas a clamar pela volta da ditadura. "Caricatos", pensava. Figuras grotescas que iam surgindo de antigos baús enferrujados. Eram engraçados e intrigantes. "Momento novo este em que estas figuras passavam novamente a ter a coragem de aparecer na rua". Plínio Salgado saltitando em seu túmulo. Os gritos de "bolsomito" apareciam para lá e para cá como que em uma festa estranha. Um universo surreal abrindo suas cortinas de teatro decadente.
Importante, devo ressaltar que a experiência democrática nos traz uma certa letargia com o passar dos anos. Acreditamos que ela se moverá sozinha, independente de nós, independente de cada uma de nossas ações individuais. Tomamos carona em seus vagões e apenas aguardamos pela próxima estação eletiva. Ledo engano imaginar isso.
A democracia é um bem precioso a ser defendido a todo custo, é uma joia muito cara a qual não podemos vacilar em sua vigilância. É um bem que deve estar muito bem guardado em nossa alma de tal forma a sermos como guardiões bem atentos aos movimentos do bandido que nos espreita.
E foi assim, nesta letargia democrática, que fui tocando a minha vida pessoal, o meu barco, os meus negócios particulares. As coisas estavam acontecendo e eu nada fiz. Sentia, claro, um certo "perigo no ar", um certo "assobiar de pássaros" que me contavam que os batimentos democráticos estavam irregulares, pulsando em ritmo diferente. Mas aquilo "não era problema meu", não votara naquele governo, estava de fora daqueles embates. Dia após dia, a presidente do país era transformada em coisa, era chamada de meretriz, era achincalhada em estádio, era tratada como débil mental, aloprada e outras coisas das mais infelizes. Panelaços de insultos, ódios regurgitados nas casas de boas famílias leitoras da Veja. Fizeram bonecos com roupas de presidiários para indivíduos que nem sequer eran réus em processo criminal. A festa era linda para os celebrantes. Dardos flamejantes eram jogados aos céus a partir da FIESP. Mas ora, pensava: "deixe os caras lá fazendo o seu protesto. Que mal há?" Nenhum, pensava. Estavam exercendo os seus plenos direitos de manifestação democrática. Assim era e assim é.
Mas algo de muito terrível lá se formava, a coisificação do ódio. A transformação de pessoas em objetos do desprezo. Como professor de história econômica, eu sabia muito bem de todas as experiências cíclicas pelas quais a trajetória deste país passara. Conhecia razoavelmente bem os golpes parlamentares e militares anteriores. Mas a letargia tende a nos fazer esquecer do passado. De certa forma, ficamos prepotentes com a história. Nos iludimos com retas imaginárias, sereias melodiosas a dizer "as curvas não mais existem - entramos agora na infinita highway".
Não entrarei aqui nos detalhes e no mérito daquilo que eu sem dúvida alguma considero como o mais pérfido golpe político já perpetrado neste país. Só a lista da Odebrecht já seria um bom indicativo sobre o papel dos envolvidos. Mas vai muito mais além. É um descompromisso completo com a razão, com a moral e com a isenção em toda esta escalada da insensatez. Mais do que isso, é um descompromisso com algo sagrado na democracia: "a derrota". A recusa renitente em não aceitar o "perder" por parte dos atores participantes. O Brasil se encontra institucionalmente doente. As regras foram violadas nos seus procedimentos mais essenciais. O golpe que se quer consumar hoje não é um atentado às formas procedimentais, mas um bombardear vil sobre a essência que se faz substância na democracia: derrotados perdem e esperam pelo próximo jogo.
Os ataques virulentos à figura da presidente, objetificada como a grande meretriz só mostram o quão doente está uma sociedade que não respeita os mínimos valores da cordialidade, da civilidade e da valoração aos iguais, do respeito às pessoas tais como elas são: gente de carne e osso. O "objetificar" mental é produto bem acabado da arte da manipulação. Teria sido a Globo? Teria sido a Veja, teria sido o Estadão? Por certo há culpa ali no cartório, mas não existiria tamanha semeadura sem um campo propenso a florescer.
O resultado é a falta completa de noção de que existem pessoas do outro lado. Que estas pessoas pensam, que elas comem, que elas acordam, tomam café e vão ao trabalho. Dilma pode ter tido seus bons erros e não foi à toa que eu não votei nela. Mas pessoa alguma merece o que se tem feito a ela neste país. Pessoalmente me sinto envergonhado por tudo isso. É um dia lamentável este 11 de maio de 2016. O dia em que os derrotados sequestrarão a jovem senhora que uma vez maltrapilha ousou ser bela neste país: a jovem chamada democracia.
A presidente Dilma, pela qual nunca tive grande apreço, sai vencedora deste aborto democrático que lhe foi imposto. Lutou o bom combate. Eu, por mim, só tenho a agradecê-la - me reaprendi como um vigilante diário a vigiar pelas coisas boas da política que imaginara estarem no "ar como dadas". E como guardião, só posso terminar dizendo algo bem direto aos que sequestraram nesta noite: "Vai ter luta!"