by Flávio Souza Cruz

terça-feira 30 2003




[Publicado originalmente no Hiperfocus em 12/29/2002 06:33:21 PM]



Amigo,


Como sabes, me mudei para Christmas Island. Aloísio Ambróz me disse ter contado a você na semana passada sobre meu destino escolhido. Contei a poucos já que poucos são os brilhos no meu céu de amigos. Me perdoe o propósito esquecido, mas sei que farias de tudo para não ter ido. Nos poupei, quero dizer - foi isso. Mas enfim, aqui estou e é hora de te falar das coisas que me agradam dizer.

Logo ao chegar, fui entrevistado pelo Intendente Geral chamado Ti Ping Ho. A tudo que eu respondia, ele me respondia com um sorriso amarelo - era como se duvidasse do meu pedido de exílio. O calor aqui é grande e a fumaça do cigarro de Ho me lembrava aquelas névoas de panela de pressão. Ele carimbou sete papéis e assinei outros 3. Quatro para mim, três para ele e eu estava livre. No mais, foi uma questão de tempo. Moro há 200 passos do mar no meio de uma estrada que leva ao farol. Achei melhor não me arriscar com tempestades e inundações de caranguejos. Sim, Christmas é rodeada por caranguejos vermelhos. Muito bons para comer, nada bons quando resolvem nos comer. Vi uma senhora na vila correr até o porto com um vermelhinho destes cravado em seus ossos esquálidos. Os malaios me tratam muito bem, os chineses sempre sorrindo como se soubessem algo que não sei - e eles sabem. Os australianos, tanto faz, tanto fez. Há muitos deles nos bares, poucos deles na vida da cidade. E aqui sou o único brasileiro, fato inédito nas transmissões de futebol internacional. Fiquei amigo de um velho malaio de nome Fahan, o alegre. Eu entendia muito pouco do inglês malaio dele. Mas ele apontava para as casas, para o céu, mar e pessoas, fazia quadrados e círculos no ar e me apontava dedos. Ao final de tudo, a boca de três dentes dava uma gargalhada e falava "Ahn!" como um pedido de concordância parecido com o nosso "né". Todas as noites eu me sentava ao lado dele e íamos contando casos, se é que alguém da minha idade pode ensinar algum caso a uma pessoa dessas. Mas ele me olhava intrigado e com olhos atentos também. Vivíamos ali naquele diálogo que pouco se entendia, mas muito se descobria.

Minha vida continua sozinha, Ernesto. Tentei escrever poemas na praia como Anchieta, mas não tenho paciência jesuita. Voltava para consertar as letras que o mar lambia e a cada conserto eu perdia um verso. Reinventava outros, mas nunca era um EU poema inteiro que nascia. Briguei com a poesia de areia e a praia agora me serve apenas para cavar buracos, coisa que sempre preferi a fazer castelos. Fahan, dia sim, dia não, me aparece com uma cesta de peixes e aponta para sua casa, sorrindo. Hoje vai ser a terceira vez que janto com ele. Sua casa é simples, mas de organização militar impecável. Me disseram que ele lutou contra os japoneses em 42 e na invasão perdera sua filha para um major. Ele anda mancando, Ernesto. A perna coxa amarrada de branco. Comprei um chapéu igual ao dele na vila, bem grande de palha e deixei a barba crescer. Queria poder dizer que chutei o balde, mas continuo preocupado com a vida. O relógio me acompanha na cabeça e acordo pela noite com o velho pesadelo de estar atrasado para entregar alguma coisa. Me lembro que a coisa foi entregue há 20 anos atrás e durmo de novo. Mas há sempre novos relógios pendurados na parede das minhas memórias. E a cada soluço do sono eles esmurram meu espírito. O espírito é forte, mas a carne é fraca, dizia o senhor. Meu espírito hoje não é forte e a carne perdeu seu sentido carnal. Ontem, depois da areia, passei a pintar poemas nas pedras. A tinta vermelha de textura grossa fez as pedras sangrarem. Foi lindo escrever "raptei meu destino à morte dos anos e me presenteei à ingenuidade ainda viva. Conjuguei meio verbo e me desfiz." para ver cada letra escorrer e mutar a cada beijo de onda. Escrevi novas linhas e o mar nova partitura. Meio cegos, o mar e eu escrevemos na pedra. Voltei vermelho, salgado e feliz. Não sobrou nada, como das vezes na areia. Mas o poema viveu em mim.


Aqui, continuo cego, Ernesto. O tempo me assombra, mas começo a aprender magias para espantar as horas. Essa carta vai em vermelho, minha alma mais azul. Fahan está aqui rindo. Meus olhos em lágrimas.


Adeus, meu amigo!

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